Entrevista: Grafiteira soteropolitana Kpitú

Relações homoafetivas entre meninas um dos temas explorados pela artista

No mês de março deste ano entrevistei a grafiteira Kpitú (Annie Gonzaga), na Praça 2 de julho, mais conhecida como Praça do Campo Grande. Chegando ao local, encontrei a jovem artista concentrada lendo um livro. Após as apresentações, iniciei a conversa falando sobre o seu processo criativo dos grafites de figuras femininas trazendo a público, questões como gênero, sexualidade e negritude. Descontraída e sorridente me respondeu: “Procuro mostrar fatos mesmos que não se enquadram nos padrões de beleza no corpo negro, gordo e que as pessoas estão sempre tentando levar para o lado pejorativo. Então, tento dar certa graça a esse corpo. Ou seja, mostrar esse corpo com uma sensualidade (risos), brincar mesmo com essa questão”. E acrescentou: “Dentre as minhas personagens, busco também dar mais visibilidade as relações homoafetivas entre meninas”. [Fotos:byJFParanaguá. Denuncie abusos. Direitos reservados]. Confira a entrevista:

Grafiteira Kpitú

A Arte na Rua – Você é baiana?

Kpitú – Sou. Nasci em Salvador, mas morei por muito tempo na cidade de Porto Seguro.

AAR – Está em Salvador desde quando?

Kpitú – Tem cinco anos.

AAR – Já retornou de lá grafiteira?

Kpitú – Não (Ri).

AAR – Qual a sua escolaridade?

Kpitú – Estou cursando o 6º semestre de História na Universidade Federal da Bahia –UFBA.

AAR – Como aconteceu o seu contato com a arte?

Kpitú – Meu contato com a arte… Eu sempre admirei o grafite por ser uma arte universal mesmo. Você tem acesso livre e imediato. Mas achava o grafite um pouco agressivo na adolescência. Somente após conhecer os trabalhos de Lee27, de Eder Muniz, quis fazer parte disso. Sempre gostei de desenhar, porém nunca havia imaginado que um dia poderia fazer esse tipo de desenho na parede; utilizar os muros como painel. Passei então a alimentar a ideia de entrar em contato com algumas meninas que fazem parte da cultura Hip Hop, do Break. Da conversa veio o incentivo: “Vamos lá. Temos que juntar forças e tomar isso de assalto, porque eles não vão chegar com o convite em nossas portas, tipo: Venha! Estamos lhe esperando!” E foi assim que comecei.

AAR – Com se deu a iniciação artística?

Kpitú – Já estou no grafite há dois anos.

AAR – Refiro-me a iniciação artística. Ou seja, quando você percebeu o seu dom para o desenho?

Kpitú – Desde pequena. Sou uma artista de gaveta.

AAR – Qual a temática que você prefere?

Kpitú – Sempre mulheres, seres femininos.

AAR – Herdou de alguém o gosto pelo desenho?

Kpitú – Não. A casa dos meus pais era cercada de grades pra eu não sair e brincar do lado de fora, porque eles ficavam com medo da violência. Então, eu escolhia entre assistir televisão, desenhar ou inventar outro universo dentro do espaço limitado.

AAR – Você é filha única?

Kpitú – Não. Tenho um irmão e sou a mais velha.

AAR – Como chegou ao grafite?

Kpitú – Fui descobrir onde vendia latas de spray, porque o local ainda é um clã dos grafiteiros, muito fechado. Pra entrar tem de ser namorada de algum grafiteiro.

AAR – Não concordo com você, hoje é possível comprar o spray sem precisar…

Kpitú – Não é só comprar spray (risos), participar de uma oficina de grafite ou uma coisa ou outra. Porém, sair pra pintar com eles é muito difícil. São muito reservados. Não é uma coisa que “Ah! Você está a fim? Vamos lá!…”

AAR – Você nota resistência por parte deles?

Kpitú – Sim, por ser mulher. Até hoje só consegui sair pra pintar com a grafiteira Talita.

AAR – Vários eventos e mutirões já foram realizados em Salvador com postagem no Facebook, publicadas no meu blog e outras mídias sem restrições de participação de qualquer artista, principalmente do sexo feminino.

Kpitú – Estou falando em sair pra pintar na clandestinidade, sem nenhum órgão ou grupo que viabilize esses encontros, entende? Sendo um contato direto é muito complicado.

AAR – Você foi pichadora?

Kpitú – Já pichei. Picho ainda, mas sou grafiteira de preferência.

AAR – Você iniciou na pichação para adquirir a prática no spray ou fez ensaios em casa? Como foi?

Kpitú – (Ri). Pichava pelos lugares que ia passando. Com isso, acabei criando um rastro até a minha casa, porque todo muro que encontrava ia pichando e grafitando ao mesmo tempo.

AAR – Quanto tempo durou essa fase?

Kpitú – Durou um ano. Até eu começar a grafitar.

AAR – Como você assinava nesse período?

Kpitú – Annie. Depois percebi que poderia responder a algum processo pelo ato de pichar e grafitar os muros e paredes não autorizadas poderia responder algum processo. Então resolvi adotar o nome da personagem que é Kpitú.

AAR – Você escolheu Capitu, personagem do livro Dom Casmurro, do escritor Machado de Assis?

Kpitú – Sim. Para ser a minha assinatura troquei o Ca pela letra K. A verdadeira Capitu foi a primeira mulher dentro da literatura que de certa forma me impressionou, por ser uma mulher que domina a situação, que dissimula (risos), que ninguém sabe muito bem o que ela está pensando e o que é esse mistério. Daí surgiu minha inspiração, como mulher, de querer um pouco disso também.

AAR – Como você define o seu estilo?

Kpitú – É mais uma arte feminista, política.

AAR – Você é uma das defensoras do Movimento Feminista?

Kpitú – Sim. É uma forma de voz. O grafite é um microfone também. É uma linguagem que posso utilizar pra manifestações, conquistas…

AAR – Você tem lembrança quando fez a primeira intervenção?

Kpitú – Janeiro de 2011. Grafitei numa área da Universidade Federal da Bahiia, no Campus de Ondina, um espaço considerado tranquilo. Lá tem uma galera de arte que nos dá certa segurança (risos). Foi muito bom porque começaram a comentar: “Olha! Quem fez aquilo?” Uns foram favoráveis, outros não. Quis de certa forma provocar e intervir mesmo, mudar o espaço.

AAR – Conte um fato pitoresco da sua vida na cena urbana?

Kpitú – (Ri). É bem recente. Aconteceu quando estava calmamente fazendo um grafite na Estação de metrô. Mas nem terminei. Ficou parecendo um picho incompleto, um rascunho na pilastra…

AAR – O que aconteceu?

Kpitú – Estava sozinha, pintando como se estivesse dentro da minha casa em pleno dia (risos). Aí parou uma viatura da polícia. Os homens saíram todos armados de metralhadoras mandando levantar as mãos, revistaram minha bolsa, talvez procurando algo que me incriminasse. Então um deles disse: “Você sabe que o que está fazendo é um crime pintando o bem público?” Respondi: não, a minha intenção é outra. Aí ele pegou as latas de spray e eu falei: “por favor, devolva-me porque preciso delas. Prometo não que vou voltar mais aqui”.

AAR – Deixaram você ir embora?

Kpitú – Nada disso. Pegaram um martelo gigante dentro da viatura e apontaram em minha direção dizendo: “Tente pegar essas latas!! Se a gente encontrar você na rua de novo vai pra cadeia”. Também me pediram o certificado de autorização pra estar ali grafitando no espaço público. Disse-lhes que não tinha nenhum documento.

AAR – Levaram as tintas?

Kpitú – Isso foi o de menos. Passei por uma experiência muito dramática na relação com a polícia. Ficou marcada a cena de um deles apontando o martelo em minha direção.

AAR – Aconteceu outra vez?

Kpitú – Não. Outras viaturas já passaram por mim. Não sei explicar, mas a polícia de certa forma ignora o ato de pichar, até dá risada, porque vê os desenhos das mulheres e acham bonitinhos. Acho que é por isso.

AAR – Como você define a sua arte hoje?

Kpitú – Faço sempre traços simples. Nada rebuscado. Uma coisa mais direta mesmo. Considero uma marca.

AAR – O que o grafite representa pra você?

Kpitu – Uma válvula de escape. É a minha fuga pra resistir a esse barril de pólvora que é Salvador, onde a gente vê muita pressão, muita coisa forte acontecendo… E isso a qualquer momento pode explodir. Os mendigos somem. Todo dia amanhece gente morta. Isso já vem ocorrendo há tempos e não sabemos até quando vai continuar.

AAR – Como é ser uma mulher na cena urbana?

Kpitú – (Ri). Um tanto solitária. Sinto-me muito solitária dentro do grafite. Até mesmo pelas mulheres que estão dentro da cena, eu não sou bem recebida, porque não tenho referências… É sério! Há um tempo atrás teve um mutirão de mulheres em Salvador, um mutirão feminista de meninas emm que eu não fui convidada, mas me fiz presente na ousadia.

AAR – Foi o mutirão organizado pelas GrafiteirasBR no Politeama?

Kpitú – Não. Foi o realizado no Museu Street Art. Tomei conhecimento pelo Facebook. Fui de ousada, cheguei lá e deixei o meu recado (risos).

AAR – O grupo da Nova10ordem é muito aberto e democrático. Você percebe discriminação quando está fazendo intervenções na rua? Recebe apoios ou elogios da população?

Kpitú – Algumas pessoas admiram, outras gritam que vão chamar a polícia. É por isso que é melhor grafitar de madrugada, da meia-noite em diante, porque você fica concentrada, sem interferências.

AAR – Você participa de algum grupo?

Kpitú –  Não. Mas gostaria de ser aceita por algum (risos). Estou candidata.

AAR – Qual a sua parceira de pintura?

Kpitú – A Talitinha. Ela não assina. Só faz o desenho. Ela é outra abandonada pelos crews (risos). Gosta de pintar com látex, mas a galera não reconhece a arte dela como grafite.

AAR – Você conhece o grafiteiro Deng?

Kpitú – Não.

AAR – Deng mora no bairro da Cidade Nova. Seria interessante Talita manter com ele. Desde que começou só pinta com látex e rolinho. Até hoje preserva a mesma pegada e a originalidade das suas pinturas representada pelo personagem denominado “bonequinho vodu”.

Kpitú – Que legal!

AAR – Quais são as áreas que você gosta mais de pintar?

Kpitú – São as mais próximas de onde moro: Federação e Ondina.

AAR– Tem pinturas em outros bairros?

Kpitú – Bonocô, Ladeira do Aquidabã, no centro. Gostaria de grafitar na periferia.

AAR – Muitos grafiteiros estão preferindo embelezar os seus bairros, como Cajazeiras, Castelo Branco, São Caetano…

Kpitú – É mais interessante. É a arte mais pra o povo mesmo.

AAR – Além de Salvador, já grafitou em outros locais?

Kpitú – Sim. Em Natal, com o pessoal que conheci por lá. Fortaleza, com um grupo de mulheres negras feministas que me chamaram pra grafitar e colar cartazes relacionados à saúde da mulher. Foi muito bom. Em Recife também fui bem recebida.

AAR – Qual a mensagem que você quer deixar?

 Kpitú – Acho que se alguém tem um grito preso na garganta deve colocar pra fora, seja de forma oral, ou através da arte, tem que se fazer ser ouvida.

1 comment for “Entrevista: Grafiteira soteropolitana Kpitú

  1. chapolin
    22 de maio de 2013 at 15:03

    Parabens maninha!!! muito sucesso pra te.

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